Elegia de Seo Antônio Ninguém (Manoel de Barros)

Sou um sujeito desacontecido

rolando borra abaixo como bosta de cobra.

Fui relatado no capítulo da borra.

Em aba de chapéu velho só nasce flor taciturna.

Tudo é noite no meu canto.

(Tinha a voz encostada no escuro. Falava putamente.)

Estou sem eternidades.

Não tenho mais cupidez.

Ando cheio de lodo pelas juntas como os velhos navios naufragados.

Não sirvo mais pra pessoa.

Sou uma ruína concupiscente.

Crescem ortigas sobre meus ombros.

Nascem goteiras por todo canto.

Entram morcegos aranhas gafanhotos na minha alma.

Nos lepramentos dos rebocos dormem baratas torvas.

Falo sem alamares.

Meu olhar tem odor de extinção.

Tenho abandonos por dentro e por fora.

Meu desnome é Antônio Ninguém.

Eu pareço com nada parecido.

Manoel de Barros. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 469 – 470.

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O menino que carregava água na peneira (Manoel de Barros)

Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito,
Porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou  a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando
ponto no final da frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta!
Você vai carregar  água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens,
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 469 – 470.

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Minha vida intelectual é…

Minha vida intelectual é inseparável de minha vida, como escrevi em La Méthode: não escrevo de uma torre que me separa da vida, mas de um redemoinho que me joga em minha vida e na vida. Nietzsche dizia: “Sempre expus em meus escritos toda a minha vida e toda minha pessoa… ignoro o que possam ser problemas puramente intelectuais”. Não sou daqueles que têm uma carreira, mas do que têm uma vida.

Meus Demônios. Edgar Morin. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 09.

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setembro 20, 2012 · 2:57 pm

Eu recordo (Pablo Neruda)

Dou fé!

Eu estive

lá,

eu estive

e padeci e mantenho

o testemunho

embora nada tenha

que recorde

eu

sou o que lembra,

embora não fiquem olhos na terra

eu continuarei olhando

e ficará aqui escrito

aquele sangue

continuará ardendo aqui aquele amor,

nunca esquecido, senhores, senhoras,

e por minha boca ferida

aquelas bocas seguirão cantando!

Memorial de Isla Negra. Pablo Neruda (Neftalí Reyes). Porto ALegre: LP&M, 2011, 248p.

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A Maior Flor do mundo – José Saramago

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setembro 20, 2012 · 1:39 pm

Manoel de Barros para crianças

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setembro 20, 2012 · 1:24 pm

Assim eu vejo a vida (Cora Coralina)

Assim eu vejo a vida (Cora Coralina)

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setembro 20, 2012 · 1:10 pm

Traço de União (Cora Coralina)

Irmanadas na poesia

nos encontramos:

Quem vem vindo.

Quem vai indo.

Na roda-viva da vida

girando se esbaldando

no encalço de uma rima 

fugidia.

Pegar no laço do pensamento

a rima feliz e plantar com amor

na divisa extrema do verso…

A chamada rima de ouro

que tem forma de chave de ouro.

E, dizer que há poetas consagrados

que têm delas um chaveiro!

Com os dedos pegamos a luz.

Começou o seu tempo.

Meu tempo se acaba.

O esplendor de uma aurora. 

O poente que se apaga.

Fui na vida o que estás agora.

Tu serás o que sou.

Nosso traço de união.

És o passado dos velhos.

Eu, o futuro dos moços.

Meu livro de cordel. Cora Coralina. 11ª Ed. São Paulo:Global, 2002,p.107 – 108.

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Luta, a palavra vibrante…

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

(Meu livro de cordel. Cora Coralina. 11ª Ed. São Paulo:Global, 2002,p.85).

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setembro 20, 2012 · 1:00 pm

Amigo (Cora Coralina)

Vamos conversar

como dois velhos que se encontram no fim da caminhada.

Foi o mesmo nosso marco de partida.

Palmilhamos juntos a mesma estrada.

Eu era moça.

Sentia sem saber

seu cheiro de terra,

seu cheiro de mato,

seu cheiro de pastagens.

É que havia dentro de mim,

no fundo obscuro de meu ser

vivências e atavismos ancestrais:

fazendas, latifúndios, engenhos e currais.

Mas… ai de mim!

Era moça da cidade.

Escrevia versos e era sofisticada.

Você teve medo.

O medo que todo homem sente da mulher letrada.

Não pressentiu, não adivinhou

aquela que o esperava

mesmo antes de nascer.

Indiferente

tomaste teu caminho

por estrada diferente.

Longo tempo o esperei

na encruzilhada,

depois… depois…

carreguei sozinha

a pedra do meu destino.

Hoje, no tarde da vida,

apenas, uma suave e perdida lembrança.

Meu livro de cordel. Cora Coralina. 11ª Ed. São Paulo:Global, 2002,p.76 – 77.

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